Se o país se democratizou em muitos aspectos, há um em que as classes dominantes não abrem a guarda: o acesso à terra urbanizada e o direito à propriedade, mesmo que esta seja ilegal. Mesmo a moradia sendo um direito fundamental em nossa Constituição, ela é desprezada até pela justiça, como se viu em Pinheirinho: protegeu-se a propriedade de uma gleba abandonada de um milhão de m², massa falida de empresa de um investidor financeiro com passagem na justiça, contra o direito à moradia de 1600 famílias, ali instaladas há oito anos, expulsas pela fúria de 2 mil policiais. O artigo é de João Sette Whitaker Ferreira.
João Sette Whitaker Ferreira
“O representante do Estado poderá, por meio de requisição e por uma duração de um ano renovável, proceder à posse parcial ou total de moradias vazias ou insuficientemente ocupadas, com o objetivo de destiná-las a pessoas em situação de desabrigo”. Um ardoroso neoliberal diria que o texto é de alguma lei comunista da antiga União Soviética. Trata-se, entretanto, do Código da Construção e Habitação , em vigor na França, um país nas últimas décadas notadamente liberal. Mostra o quanto, em outros lugares, o direito à moradia tem prioridade sobre o direito à propriedade.
No Brasil, a coisa é bem diferente, e mesmo a moradia sendo um direito fundamental em nossa constituição, é desprezada até mesmo pela justiça, como se viu em Pinheirinho: protegeu-se a propriedade de uma gleba abandonada de um milhão de m², massa falida de empresa de um investidor financeiro com passagem na justiça, contra o direito à moradia de 1600 famílias, ali instaladas há oito anos, expulsas pela fúria absurda de 2 mil policiais. E são centenas os casos, nos centros de nossas cidades, de uso violento da força policial para reintegrações de “posse” contra famílias de sem-teto, ocupantes de prédios vazios, se é que pode ser chamado “posse” deixar ilegalmente um prédio ao abandono. A tal “função social da propriedade”, estabelecida na constituição, está longe de ser realidade.
Se o país se democratizou em muitos aspectos, há um entretanto em que as classes dominantes não abrem a guarda: o acesso à terra urbanizada e o direito à propriedade, mesmo que esta seja ilegal. E essa prerrogativa das elites resulta em cidades que já não dão conta de resolver as consequências da intensa exclusão espacial. Soa cada vez mais estranha a euforia que nos coloca entre as maiores economias do mundo, sendo que vivemos uma tragédia urbana generalizada, como que para lembrar-nos do nosso subdesenvolvimento. E não é só contra os sem-tetos que se pratica sistemática segregação e intolerância: trata-se do mesmo fenômeno de dominação que há séculos relega à precariedade habitacional, na rua, em cortiços, favelas, ou loteamentos precários nas distantes periferias, quase metade da população das cidades.
Cidades que são a representação espacial de uma sociedade cindida, herdeira da lógica escravocrata, onde as elites exercem uma hegemonia onipotente, e utilizam-se do Estado e da Justiça para quase sempre passar para trás o bem coletivo, garantindo seus interesses particulares. Um Estado por meio do qual, nas palavras de Raymundo Faoro, a elite política “conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus”. No Brasil, o “público” não é o bem de todos, mas o privilégio de alguns. Em que pese o avanço das políticas sociais em outros setores, no âmbito urbano essa equação torna nossas cidades fadadas a uma implosão social.
Isso explica não só os pesos e medidas diferentes para tratar as ocupações de prédios (enquanto não são poucos os empreendimentos da alta sociedade, de shopping-centers a condomínios de luxo, que continuam, sem serem incomodados, ocupando áreas ilegais), mas também, por exemplo, que se ache normal e até chique a proliferação de condomínios que se tornaram fortalezas e, à moda do Apartheid sul-africano, se isolam com muros eletrificados e matam assim a cidade. Isso explica porque se permite o avanço sem controle do mercado imobiliário, tantas vezes movido pelo clientelismo e pela corrupção, que desfigura bairros inteiros para levantar prédios demais para os mais ricos, enquanto se relega os pobres sempre mais para longe. Isso explica o fato de se gastarem fortunas em pontes e túneis por onde o transporte de massa é proibido de passar: as políticas “públicas” de transporte privilegiam o insustentável modelo do automóvel, mesmo que diariamente só 30% se desloquem de carro, enquanto os outros 70% se apertam em ônibus, trens e metrôs superlotados.
O desastre ambiental desse modelo está aí: o solo impermeabilizado pela voracidade do mercado da construção, os rios tamponados por vias expressas, a falta de urbanização nas periferias, o colapso do sistema hídrico urbano levam a vida todo ano de centenas de brasileiros atingidos por enchentes, desabamentos ou outras tragédias previsíveis.
Paradoxalmente, aquilo que se festeja hoje como um salto de modernidade, a formação de cidades guiadas pela exclusão social, o consumo exacerbado e a defesa incondicional da propriedade, é na verdade um caminho inexorável para a barbárie. É hora do Brasil se organizar para uma verdadeira rebelião cívica urbana, para deixar às futuras gerações cidades verdadeiramente democráticas e socialmente justas.
João Sette Whitaker Ferreira, arquiteto-urbanista e economista, é professor da Faculdade de Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Universidade Mackenzie, coordenador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP – LabHab.
No Brasil, a coisa é bem diferente, e mesmo a moradia sendo um direito fundamental em nossa constituição, é desprezada até mesmo pela justiça, como se viu em Pinheirinho: protegeu-se a propriedade de uma gleba abandonada de um milhão de m², massa falida de empresa de um investidor financeiro com passagem na justiça, contra o direito à moradia de 1600 famílias, ali instaladas há oito anos, expulsas pela fúria absurda de 2 mil policiais. E são centenas os casos, nos centros de nossas cidades, de uso violento da força policial para reintegrações de “posse” contra famílias de sem-teto, ocupantes de prédios vazios, se é que pode ser chamado “posse” deixar ilegalmente um prédio ao abandono. A tal “função social da propriedade”, estabelecida na constituição, está longe de ser realidade.
Se o país se democratizou em muitos aspectos, há um entretanto em que as classes dominantes não abrem a guarda: o acesso à terra urbanizada e o direito à propriedade, mesmo que esta seja ilegal. E essa prerrogativa das elites resulta em cidades que já não dão conta de resolver as consequências da intensa exclusão espacial. Soa cada vez mais estranha a euforia que nos coloca entre as maiores economias do mundo, sendo que vivemos uma tragédia urbana generalizada, como que para lembrar-nos do nosso subdesenvolvimento. E não é só contra os sem-tetos que se pratica sistemática segregação e intolerância: trata-se do mesmo fenômeno de dominação que há séculos relega à precariedade habitacional, na rua, em cortiços, favelas, ou loteamentos precários nas distantes periferias, quase metade da população das cidades.
Cidades que são a representação espacial de uma sociedade cindida, herdeira da lógica escravocrata, onde as elites exercem uma hegemonia onipotente, e utilizam-se do Estado e da Justiça para quase sempre passar para trás o bem coletivo, garantindo seus interesses particulares. Um Estado por meio do qual, nas palavras de Raymundo Faoro, a elite política “conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados seus”. No Brasil, o “público” não é o bem de todos, mas o privilégio de alguns. Em que pese o avanço das políticas sociais em outros setores, no âmbito urbano essa equação torna nossas cidades fadadas a uma implosão social.
Isso explica não só os pesos e medidas diferentes para tratar as ocupações de prédios (enquanto não são poucos os empreendimentos da alta sociedade, de shopping-centers a condomínios de luxo, que continuam, sem serem incomodados, ocupando áreas ilegais), mas também, por exemplo, que se ache normal e até chique a proliferação de condomínios que se tornaram fortalezas e, à moda do Apartheid sul-africano, se isolam com muros eletrificados e matam assim a cidade. Isso explica porque se permite o avanço sem controle do mercado imobiliário, tantas vezes movido pelo clientelismo e pela corrupção, que desfigura bairros inteiros para levantar prédios demais para os mais ricos, enquanto se relega os pobres sempre mais para longe. Isso explica o fato de se gastarem fortunas em pontes e túneis por onde o transporte de massa é proibido de passar: as políticas “públicas” de transporte privilegiam o insustentável modelo do automóvel, mesmo que diariamente só 30% se desloquem de carro, enquanto os outros 70% se apertam em ônibus, trens e metrôs superlotados.
O desastre ambiental desse modelo está aí: o solo impermeabilizado pela voracidade do mercado da construção, os rios tamponados por vias expressas, a falta de urbanização nas periferias, o colapso do sistema hídrico urbano levam a vida todo ano de centenas de brasileiros atingidos por enchentes, desabamentos ou outras tragédias previsíveis.
Paradoxalmente, aquilo que se festeja hoje como um salto de modernidade, a formação de cidades guiadas pela exclusão social, o consumo exacerbado e a defesa incondicional da propriedade, é na verdade um caminho inexorável para a barbárie. É hora do Brasil se organizar para uma verdadeira rebelião cívica urbana, para deixar às futuras gerações cidades verdadeiramente democráticas e socialmente justas.
João Sette Whitaker Ferreira, arquiteto-urbanista e economista, é professor da Faculdade de Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Universidade Mackenzie, coordenador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da FAUUSP – LabHab.
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